Era domingo. Era noite. Não havia nuvens e a lua estava especialmente cheia, preenchendo boa parte do céu com a sua forma e todo o resto com a luz que refletia do sol. Se eu não estivesse no meio da cidade, cheia das suas luzes elétricas e neons, certamente estaria igualmente claro (e poético), graças à ela. O clima estava agradável, pedindo por uma caminhada. Minha mente, ao contrário do céu, estava bastante nublada, pedindo por uma reflexão.
Andei por horas, cruzando a cidade para chegar até a minha casa. No caminho, na região da Estação da Luz, fui abordado por uma mulher, claramente dependente de drogas, armada com caderno e caneta, me oferecendo sua Arte Cultura: Poesia de Rua. Seu nome é Vanessa, ou, como ela me disse, sorrindo com seus dentes faltantes: "Vanessa do Largo, porque não sou nem a Camargo, nem a Da Mata, mesmo sendo Vanessa. Então, como sou daqui, sou a Vanessa do Largo, entendeu?".
Pessoas que passavam por nós olhavam com estranheza. Nunca saberei o que pensavam. Se era "o que essa mulher está conversando com ele?" ou "o que esse cara esta conversando com ela?". Mas perceber isso também me divertia e, ao mesmo tempo, entristecia. Afinal, somos dois seres humanos dotados de capacidades comunicativas. Por que motivo uma conversa deveria ser tão estranha? Sociedade doente...
Com o passar do tempo, ela foi ficando mais confiante para falar. Disse muitas frases prontas, de fato, mas todas com alguma poesia. Ao mesmo tempo que falava, riscava seu caderno com uma agilidade nervosa típica de alguém que já está há muito entregue às drogas. Tive a nítida impressão de que, se fosse preciso, ela ficaria horas e horas riscando aquelas folhas.
Por fim, Vanessa fez o pedido que eu já esperava desde o momento que a vi se aproximar: "aceito qualquer contribuição que puder dar pela minha Arte Cultura: Poesia de Rua". Era engraçado como, sempre que falava do que estava fazendo, ela precisava repetir o slogan inteiro. Ao mesmo tempo que sua voz e jeito de falar transpareciam todo o peso daquela vida.
Olhei em seus olhos e decidi fazer um pequeno jogo:
– Se eu te der algum dinheiro. O que fará com ele?
– Vou tomar um banho.
– Não minta pra mim, Vanessa! O que vai fazer com o dinheiro?
– Vou mesmo tomar um banho, porque estou precisando... e dar uns pegas também, é verdade! Mas estou nessa vida porque eu quis, porque eu escolhi!
Eu sorri, pois era exatamente isso que eu queria com aquele joguinho. Só queria ouvir uma verdade óbvia. Queria que ela fosse verdadeira comigo, assim como eu estava sendo com ela naquele momento.
Então fiz um último pedido: que escrevesse algo para mim enquanto pegava algum dinheiro para ela. Sua caneta voltou a riscar nervosamente a folha e Vanessa declamava aquilo que colocava no papel:
"p/ Sérgio c/ carinho
Arte Cultura
Poesia de Rua
Somos livres p/ escolher
Porém escravos das consequências
Vanessa do Largo"
Não cabia a mim fazer qualquer julgamento ou tentar "salvá-la daquela vida". Sabia que, de certa maneira, estava contribuindo com seu vício, mas suas palavras falavam tanto dela mesma quanto de mim. Ela foi livre pra escolher e agora é escrava das consequências. Então lhe dei um pouco de humanidade, de atenção, de carinho.
Ofereci apenas um aperto de mãos e um "obrigado" ao invés de ceder à minha vontade de abraçá-la. Me arrependo disso.
Trocamos a minha nota por sua folha. Papel por papel. Cada qual com um valor diferente. E, ao meu ver, fiquei com o mais valioso dos dois.
Made of Steel
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