quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

FRANCO ESPELHO

Durante minha infância e adolescência, fui o "nerd, tímido, baixinho e gordinho que sofria bullying". Com 16 anos, cresci e emagreci. Com 17, me olhei no espelho e disse pra mim mesmo que não seria mais tímido, que mudaria meu jeito de agir para não deixar de viver o que o mundo oferecia.

Hoje, 10 anos depois, me pego novamente diante do espelho. E o que vejo?

Vejo alguém que conseguiu apenas em parte cumprir o trato que fez consigo mesmo. Alguém que realmente deixou a timidez no passado e dificilmente se vê recuar por receio de se expor, mas, também, alguém que não conseguiu viver plenamente o que o mundo ofereceu.

Sou um livro escancarado, de letras grandes, páginas largas e cheias de desenhos. Há quem ache até a capa atraente. Entretanto, nem todos conseguem ler o que está escrito, porque poucos querem ou sabem ler. As figuras são sempre coloridas e chamam a atenção. Os títulos e algumas palavras em destaque também ganham olhares. Mas o texto por várias vezes parece incoerente e as notas de rodapé não são capazes de esclarecer.

Gosto de ser quem sou hoje, de verdade. Mesmo assim, me sinto eternamente angustiado por nunca parecer ser suficiente para mim mesmo.

Conheço pessoas, ajudo pessoas, me preocupo com pessoas, me relaciono com pessoas, me entrelaço com pessoas, gozo com pessoas, divido com pessoas, sorrio com pessoas, brigo com pessoas, vejo pessoas... ainda falta!

Conheço a mim mesmo, me ajudo, me preocupo comigo, me relaciono comigo, me entrelaço comigo, gozo comigo, divido comigo, sorrio comigo, brigo comigo, me vejo... ainda falta!

Por vezes não me sinto humano... e quem está ao meu redor enxerga o exato oposto. Quanto mais me vejo vazio, mais as pessoas vêem cheio.

Será que visto uma máscara que não consigo mais tirar? Que tipo de maldição é essa que sequer me permite sentir uma lágrima escorrer pelo meu rosto? Como chamar de bênção essa armadura que me protege implacavelmente contra os golpes do mundo, mas que me priva do toque sutil, encarcera minhas dores e sufoca meu grito?

Eis a resposta: estou diante do espelho, mas não vejo.

Made of Steel
(o nome deste blog jamais fez tanto sentido quanto agora...)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

UM NAVIO DE NUVENS NO HORIZONTE

Existe uma cidade
Onde existe um lugar
Onde existe um penhasco
Onde existe uma pedra.

Existiu um par
Onde existiu um momento
Onde existiu um navio de nuvens no horizonte
Onde existiu um anoitecer
Onde existiu uma queima de fogos-de-artifício.

Existirá uma lembrança
Onde existirá um sorriso
Onde existirá um espaço para novas lembranças.

Made of Steel

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

SABEDORIA DE ESTAMIRA

Sou um típico morador da cidade de São Paulo: sempre correndo, sempre sem tempo, pegando metrô, pegando ônibus, pegando carro, pegando trânsito. Vivo a cidade no seu ritmo e, muitas vezes, com seu olhar indiferente para tudo que vai além do meu próprio umbigo.

Certa vez, numa manhã qualquer, quase embarcando num ônibus no Terminal Bandeira, ouvi gritos agudos que não significavam nada em especial. O som direcionou meu olhar pra cena e vi um grupo de funcionários da Prefeitura jogando coisas num caminhão, enquanto uma moradora de rua observava, impotente, seus pertences tão simplórios sendo levados.

O que mais prendeu minha atenção não foi a indiferença de quem passava por ali, nem o modo autômato como os funcionários realizavam sua tarefa, pois já era esperado. As pessoas estão preocupadas demais consigo mesmas, e os trabalhadores estavam apenas cumprindo ordens, sem tirar qualquer tipo de prazer daquela situação.

O que me hipnotizou foi o rosto daquela mendiga e seu cântico quase animalesco. Ela não chorava, não enraivecia. Obviamente com sua razão danificada por algo que nunca saberei o que foi, aquela senhora de aparentes 50 ou 60 anos de idade se limitava a grunhir coisas ininteligíveis.

Me lembrei de Estamira, chamada por uns de "louca", por outros de "profeta", por alguns de "sábia". Fiquei imaginando o quanto daquele discurso da mendiga do Terminal Bandeira não poderia conter sabedoria, se fosse possível entendê-lo.

"A culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário, entendeu?, que joga a pedra e esconde a mão".

"Ó, você quer saber? eu não tenho raiva de homem nenhum. Eu tenho é dó. Eu tenho raiva do trocadilo, do esperto ao contrário, do mentiroso, do traidor. Desse é que eu tenho raiva, ódio, nojo!".

Meu ônibus começou a andar e mantive meu olhar naquela senhora enquanto pude. Uma cena triste, mas humana. Fui embora dali com a certeza de que, em pouco tempo, ela estaria lá de novo com várias outras coisas acumuladas, até que o processo todo se repita.

Seja como for, saí com a certeza de que, mesmo sem entender uma palavra sequer do que ela dizia, ela estava certa.

Made of Steel

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

CICATRIZES OCULTAS

Agosto. Segunda-feira. Tarde. O rapaz, chamado Lucas, tinha no rosto uma expressão indiferente, senão tediosa. Na sua mão, uma pequena máquina manipulada com destreza duvidosa, mas suficiente. Cada fio que caía embalado pelo som incansável do aparelho revelava algo novo. 

Em oposição ao semblante do rapaz, eu observava atentamente cada detalhe. Queria garantir que aquele momento ficaria registrado na minha memória. Então começaram a surgir: cicatrizes. Mais do que pensei ter. Mais do que lembrava ter.

Aquela briga com minha irmã mais nova há muitos anos atrás... Aquele dia em que caí enquanto corria e acertei a quina de alguma coisa... Acho que era isso... E essa? De onde veio? E aquela?

Eram cinco no total. Das quais apenas uma tinha origem certa. As demais estavam lá para provar que as tinha vivido, mas minha mente não me dizia o que. Sensação engraçada aquela. Misto de descrença e desagrado. Desconforto.

O som findou. Meu reflexo no espelho mostrava que agora estava completamente careca. Acho que nem quando nasci tive tão pouco cabelo. Pela primeira vez em todos os meus quase 26 anos de historia, não tinha como me esconder.

Cada um daqueles fios de cabelo era ao mesmo tempo uma parte do meu ego e um pedaço da minha armadura. Desde pequeno sempre me senti tão frágil, mesmo usando de todos os recursos que dispunha para mostrar o contrário pro mundo. Agora eu estava ali, com minha armadura no chão, nu, leve. Não tinha mais motivo para me esconder. Precisava provar para mim mesmo que me bastava, sem truques, sem ego.

Passei a mão por toda a careca e senti o toque áspero dos minúsculos fios que escaparam à máquina. Olhei mais uma vez cada uma daquelas cicatrizes. São feridas que nunca fecharão completamente e, mesmo que não me lembre de onde vieram, não me importo. Eu aceito.

Uma vez ouvi a frase: "Ria, e o mundo rirá com você. Chore, e chorará sozinho". Bom.. Diante de mim mesmo naquele espelho, eu sorri.

Made of Steel