quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

ALG'UMA

Uma recepção com vidro que o separa da atendente. Dois documentos. Uma hora. Quarenta Reais. Uma chave. 38. Um corredor muito estreito. Muitas portas. 38. Uma cama. Duas pessoas.

Eram duas mesmo, uma e a outra? Ou apenas uma? Quanto à outra não há como saber, mas a uma não era uma.

Uma não era pessoa, era algo. Algo que foi uma pessoa, mas naquele instante era algo.

Quando uma vira algo? Como uma vira algo?

38. Roupas espalhadas. Nu.

Nu de corpo. Nu de vontade. Nu de querer. Nu de ser. Nu de estar. Nu de viver. Não o nu que liberta, mas o que aprisiona, que engana, que carece.

38. Olhos fechados. Sem vontade. Obrigação.

Mas quem obriga? Alguém obriga?

Erro. Raiva. Nojo. Pena. Desprezo. Do algo, não da outra. A outra não tem culpa. A culpa é da fraqueza de algo, do medo de algo, da tristeza de algo, da solidão de algo, do arrependimento de algo, da dor de algo.

Um espelho. Troca de olhares. Uma olha pro algo. Corrói.

47 minutos. Roupas. Corredor. Recepção. 38. Adeus. Obrigação. Beijo. Vazio.

A uma vira algo quando se esquece daquilo que é. O erro traz vergonha, pois envergonha todos que o vêem como uma, todas pelas quais uma se entregou de verdade, todos que acreditam nessa uma como sendo mais que apenas uma, mesmo que nenhum destes todos saiba que uma virou algo, pois a pior que pode existir é uma vergonha de si próprio.

Pelo menos o algo agora quer voltar a ser uma e, só de dar esse pequeno passo, se torna alg'uma.

Made of Steel

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